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The Leftovers | A última temporada e a busca humana por respostas

Não é fácil produzir um material audiovisual que se proponha analisar os limites da fé humana sob as mais diversas ópticas. Posso dizer que é ainda mais difícil engatar uma produção do gênero se você já sofreu perseguição outras vezes justo quando decidiu imprimir a temática em produtos mainstream que raramente enveredam para o lado mais humano de questões tão complexas quanto a devoção por algo ou a busca por respostas como uma característica idiossincrática da raça humana. Damon Lindelof, a mente por trás de Lost, não teve medo de arriscar e foi essa pessoa mais uma vez. Por mais perigoso que fosse adaptar a obra de Tom Perrotta, Lindelof escolheu The Leftovers (o livro) ao notar que o autor partia dos mesmos princípios que o seguiu por toda sua carreira como showrunner, o de que “deixar o mistério existir” sempre será mais importante do que ter respostas para tudo.

Como série, The Leftovers felizmente conseguiu expandir o universo do livro ao extrair do seu elenco e do seu enredo todas as possibilidades que um show de canal premium se permite entregar. A terceira e última temporada deu espaço para as consequências esperadas após os eventos da Partida Repentina, ocorrida sete anos antes na timeline do show, e usou todos os seus protagonistas como fios condutores de um último teste de fé antes do apocalipse que se desenhou no horizonte durante os oito episódios finais. Nora, Kevin, Matt, Laurie, Kevin Sr., John e Michael tiveram tempo para duvidar, para se encontrar e para conseguir a maior das respostas e ao mesmo tempo nenhuma delas. Foram oito horas conduzidas com uma maestria técnica e ao mesmo tempo tão humana que acabou se tornando impossível não se emocionar com os últimos desfechos embalados pela emblemática trilha sonora de Max Richter.

Curiosamente a Austrália, escolhida como palco dos eventos principais da temporada, se encaixou perfeitamente na atmosfera apocalíptica da despedida. Cada paisagem desolada e paradisíaca representou um passo em direção aos testes e reencontros protagonizados pelos personagens. Melbourne com seus prédios incomodamente alinhados de uma forma quase clínica, resgatou o aterrorizante sentimento de não pertencer e de solidão vivido pelo casal Nora e Kevin no doloroso G’Day Melbourne. Já os vastos desertos do continente australiano representaram a busca messiânica de Kevin Sr. ao tentar parar o apocalipse que não estaria ligado a Jarden, como o evangelho de Matt tentou estabelecer.

No entanto, a sutileza de The Leftovers não deixou nenhum desses eventos serem mais do que deveriam ser. Afinal, a série sempre foi sobre o componente humano após um evento aparentemente sobrenatural ou divino. Dessa forma, nada mais justo do que deixar Christopher Eccleston dar um show no último episódio da trilogia de horas enfocadas no reverendo Matt Jamison. It’s a Matt, Matt, Matt, Matt World trouxe Matt tendo um momento com Deus num dos melhores diálogos de 2017 na TV. E como nada aqui é por acaso, logo após uma hora sobre a linha que separa fé da completa alienação, Laurie Garvey, a mulher da ciência, ganha o segundo momento mais emocionante deste último ano em Certified. Assim, junto do já citado G’Day Melbourne e da series finale, temos três horas capazes de mostrar que absolutamente nada na TV americana nos últimos anos foi capaz de evocar o que esses episódios representaram. Um exemplo visceral do que é não se encaixar no mundo quando não se consegue suportar o peso da falta de um propósito na vida.

Mas se o peso das despedidas e de episódios atordoantes como The Most Powerful Man in the World (and His Identical Twin Brother) – o último capítulo de Kevin Garvey no seu afterlife pessoal – fizeram parecer que The Leftovers arrancaria o nosso último sentimento de esperança e felicidade, o magistral The Book of Nora chocou o mundo ao fazer exatamente o contrário. Ao decidir construir a última hora da série apostando unicamente na força das interpretações dos seus atores, Lindelof e Perrotta entregaram uma ode definitiva à criticada expressão “série sobre pessoas”. Num show onde todos os personagens foram construídos a partir de histórias que eles mesmos nos contaram, sem a necessidade de pontuar com imagens tudo o que estava sendo dito, Nora Durst conseguiu ser a representação final deste artifício.

The Leftovers apresentou Carrie Coon ao mundo e, ao construir o fim de Nora com momentos tão poderosos, a atriz provavelmente é outra mulher a fazer história na TV. Felizmente estamos numa época onde personagens femininos fortes vêm ganhando mais e mais espaço na ficção, e Nora Durst sempre terá um lugar especial como “a garota mais corajosa do mundo”. Numa interpretação simplista, uma mãe que enfrentou a dor de ver os filhos partirem sem nenhuma explicação lógica e foi capaz de atravessar realidades e deixá-los mais uma vez apenas para garantir que eles ficassem em paz. Sim, eu acredito em Nora. Sou do time da verdade aqui.

Uma das coisas mais lindas de uma obra audiovisual com o apelo de The Leftovers são as infinitas margens de interpretações que ela abre. Eu tenho certeza que a série ainda será objeto de discussão e análises por anos. A cada revisão uma coisa nova será descoberta e essa mágica sensação não está presente em muitos produtos atuais. Com esse final foi a nossa vez de sermos deixados para trás, só que com a reconfortante e plena sensação de que a esperança e o amor são capazes de sanar até mesmo a mais cruel e implacável das buscas. Isso é que é ser arrebatado pela arte, meus caros.

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