Crítica | Uma Mulher Fantástica
Todo século é marcado por grandes mudanças e por questões essenciais no âmbito social, psicológico, econômico e outros, que perpassam todos os indivíduos. Atualmente uma das questões mais em voga é a da sexualidade. Parece que ainda é muito difícil compreender por completo a homossexualidade e os transsexuais por uma simples razão: as pessoas ainda não aprenderam a respeitar o outro, seja ele quem for.
Imagine você, maior de idade, independente, morando com seu namorado ou namorada, tendo uma vida normal e muito apaixonada. Em uma madrugada, após uma bela noite de amor no dia de aniversário de namoro, seu parceiro ou parceira acorda passando muito mal. Você o/a leva para o hospital, mas é tarde demais. É preciso avisar à família e à ex-esposa/ao ex-esposo para que as providências do enterro sejam tomadas. A família decide que, por você ser quem é, não tem direito de comparecer ao enterro da pessoa que mais amava na vida. Além disso, começam a desconfiar que você tenha alguma culpa na morte desta pessoa e abrem uma investigação que irá te despir não apenas psicologicamente, mas também fisicamente. Para completar, o filho do(a) falecido(a) não aceita que você era realmente parceiro de seu pai/mãe e decide te expulsar do apartamento onde moravam. Pedem para você respeitar a dor da família. Em nenhum momento pensam na sua dor. Você não é humano para eles, você não sente, você só existe para causar desconforto. Você é trans.
Essa é a história de Marina Vidal, interpretada pela atriz igualmente trans Daniela Vega. Por não ser aceita pelo que é, ela se torna um estorvo para a família do falecido Orlando, sendo que tudo o que deseja é se despedir do amado. O filme, embora sutil, possui um tom muito intenso e carregado de significado em todos os detalhes. Em alguns momentos a angústia toma conta de nós de tal maneira que nos deixa sem ar. Acompanhamos a saga de Marina desde a morte de Orlando até o momento em que finalmente consegue dizer-lhe adeus.
A força da personagem é incrível, guardou todas as lágrimas para derramar apenas no momento certo. Ignorou com bravura os preconceitos da família de Orlando, que insistia em afastá-la e em pisar nos seus sentimentos, para poder ela mesma se curar e seguir em frente. A desenvoltura de Marina é incrível. Permanece fiel à pessoa que ela é do começo ao fim, mesmo que isso signifique ser humilhada. E podem ter certeza de que ela o foi. Derramamos por ela todas as lágrimas não choradas ao longo do filme. Nos indignamos com a intolerância das pessoas para com essa mulher, que antes de tudo é um ser humano como qualquer outro, com sentimentos como qualquer outro, que devem ser respeitados.
O filme, dirigido por Sebastián Lelio (Gloria), se passa no Chile e é tão detalhado que preocupou-se até em mostrar a força de Marina através de seu figurino, que em nenhum momento usa o preto, símbolo do luto. Ela sempre se veste com roupas que condizem com a segurança que tem em relação a quem é e o que sente. Em alguns momentos, principalmente após tentativas de contato com a família de Orlando, ela se mostra perdida e frágil, situação porém que dura pouco, dada a grande obstinação da personagem. Há algumas sequências mais simbólicas que representam exteriormente a tristeza que Marina sente e as dificuldades que precisa superar, como quando está andando contra o vento, que começa a ficar cada vez mais forte até que ela não mais consegue andar. Essas sequências tornam o filme único e artístico, dialogando perfeitamente com o final, no qual somos agraciados com uma bela apresentação de canto lírico de Marina.
A importância de Uma Mulher Fantástica para a atualidade é imensa, uma vez que, parando para pensar, é possível ter certeza de que se, biologicamente, Marina tivesse nascido mulher, não teria passado por essa situação. Todo o seu sofrimento se deu por ela ser trans. É muito errado uma pessoa, seja ela quem for, sofrer simplesmente por existir. Essa história chama a nossa atenção para isso e reforça mais uma vez que os trans vivem suas vidas como qualquer outra pessoa e que não há razão para tanto preconceito. É interessante também que este não é um filme que trata da transformação de um homem que se descobriu trans. Este é com certeza um longa sobre uma mulher, cujo adjetivo do título se aplica perfeitamente. Há apenas Marina, e isso é o suficiente.